- Ronaldo?
Ela chegou. To indo, eu disse, esfregando os olhos. Era ela, mesmo, o cabelo sujo e bagunçado da noite ruim, a vida atravessada na garganta. Tão linda, meu deus, mesmo com a blusa branca vomitada - nem o cheiro de bebida regurgitada embaçava a beleza dela. Ela tropeçou, riu e se apoiou na mesa da cozinha. Olhou pra baixo, jogou a mão recusando o copo d'água que eu lhe oferecia e disse, ainda babando um pouco:
- Não agüento pôr mais nada pra dentro. Nem pra fora... Chega de trânsito no meu esôfago.
Entendo, entendo. Bebi eu a água - mas ali eu bebia a ela. Três da manhã, eu de pijama, ela de salto quebrado... Amigo uma porra, eu queria ela por dentro.
- Ronaldo, eu ando tão cansada... Eu digo, cansada mesmo. Destruída. Ultrapassei meus limites.
Descanse na minha cama, eu pensava enquanto ela falava olhando pra cima, respirando o ar de uma praia inteira por vez, os peitos subindo e descendo lentamente. Eu a entendia tão bem, o cansaço dos séculos nos ombros, a falta de combustível para viver, para suportar...
- Ah, desculpa te encher com as minhas bobagens! Posso usar o banheiro?
- Vai lá, aproveita e toma logo um banho, tem toalha limpa no armário.
Ela me deu um sorriso, amansou os olhos e alisou meu rosto.
- Se não fosse você pra cuidar de mim agora, eu não sei...
- Não tô fazendo nada demais. Vai lá.
Ela foi, apoiando-se na parende, rindo nervosa e enxugando as lágrimas preto-azuladas da maquiagem. Mariana era do tipo que falava pausadamente para disfarçar a inquietação que a devorava por dentro. Era uma bomba latente. Explodia: os olhos incotroláveis piscando mil vezes por segundo enquanto ela fumava mirando o teto, o céu, o desconhecido. Mariana era uma busca eterna.
- Ronaldo!, gritou ela do box, a voz saída de um sorriso que implorava socorro, que implorava vida.
- Oi?
- O que acontece quando a gente pisa depois do limite?
- Você não faz perguntas legais quando tá bêbada. Termina teu banho...
Ela deixou escapar uma risada. Eu sei que ela não brincava quando dizia "destruída", e isso me fascinava: Mariana nunca se fazia de vítima. Nem de forte.
- Vou forrar a cama pra você, Mari! Amanhã te deixo em casa.
- Oh, chéri, não precisa, eu pego um táxi. Vim pra cá porque precisava de você.
Ah, o estouro no meu peito... Mariana, Mariana, não seja tão displicente com as palavras. É claro que ela ficou a noite toda aqui. É claro que eu disse "vou dormir no sofá, boa noite", é claro que ela miou "não, vem cá, to precisando conversar", mas claro ainda é que a conversa se transformou noutra coisa e que no dia seguinte arrotávamos ressaca-doutra-coisa.
Deixei a Mari em casa, constrangimento dispensável, beijar ou dizer "se cuida"? Homem pensa devagar nessas horas. Ela me atropelou o engarrafamento de hipóteses e saiu do carro. Fechou a porta. "A gente podia marcar de ser ver esse sábado..." num impulso, enfim, eu fiz algo. Porém ela, mais pausadamente do que nunca, respondeu que não, obrigada. Vou viajar. Morar fora, não sei. To um, trapo, UTI-quase-IML, você sabe, preciso fazer alguma coisa.
ahhh... uhnn... ta.